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domingo, outubro 16, 2005

Esperança


No segundo semestre deste ano, reparei numa novata da minha sala. Ela era pequenininha, magra quase esquelética, com os cabelos estranhos e assanhados, o rosto muito pálido, e várias vezes eu a flagrava observando-me insistentemente.
- Provavelmente mais uma que me considera um bicho estranho - eu pensava.

Semana passada, enquanto eu estava sentada sozinha, ela veio falar comigo.
- Boo, você não lembra de mim?
Arregalei os olhos. É fato que eu sou uma desmemoriada no quesito "nomes"(levo, em média, uma semana pra decorar o nome de alguém que acabei de conhecer - e sempre passo situações constrangedoras por causa disso), mas esquecer de amigos já era um abuso.
Observei-a bem e percebi ela estava com o cabelo quase raspado.
- Huh, no momento eu não te reconheço. Talvez seja por causa do cabelo.
- É, eu resolvi tirar a peruca. Incomodava e coçava muito.
- O que houve?

Ela suspirou fundo e segurou minha mão. Normalmente, eu daria um tapa num desconhecido que fizesse isso, mas algo me dizia que aquela menina era alguém a quem eu já quis muito bem.
- Nós éramos amigas de infância, e você foi até no meu aniversário de 15 anos..- Ela riu, mas ficou séria de novo- Eu estava cursando odonto, mas sempre quis medicina. Todo ano eu me repetia que iria trancar o curso e tentar tudo de novo, mas a conveniência, a preguiça, as pessoas.. Enfim, já no final do curso, ano passado, minha barriga começou a crescer e meu período de mestruação parou.
- E então?
- Fui à ginecologista e ela disse que eu estava grávida, e me mandou fazer um exame de ultra-sonografia para confirmar. Ah, minha mãe deu um escândalo, espalhou para toda a família, meu pai chamou meu namorado para uma conversa, imagine o desastre! Quando o médico estava fazendo o exame, eu percebi que ele franzia a testa e passava um certo tempo pensando. Chamou minha mãe para fora da sala e disse que voltava em breve. Acredita que eu ainda pensei "xi, o neném é deformado!"? Pois bem, quando minha mãe e o médico voltaram, percebi que minha mãe estava com os olhos inchados e com o olhar atônito. Eu estava com um tumor tão grande nas trompas que tive de ser hospitalizada naquele dia mesmo.
- Hum.
- Fui operada, fiz quimioterapia, um inferno! Daí eu pensava "eu vou morrer e não vou ter feito o que eu queria fazer", entende? Era só o que eu conseguia pensar, "eu vou morrer e tive preguiça de viver".

Eu apertei sua mão mais forte.
- Então, o milagre aconteceu, deu tudo certo! Fiquei curada! Já estou até podendo dirigir sozinha- ela soltou uma risada -e assim que o meu cabelo voltar a crescer eu vou pintar de loiro, porque eu gosto de mim loira, sabe?
- É, eu sei. E seu cabelo vai ficar cacheadinho de novo, parecendo um anjinho.
- Você lembrou de mim!
- Prometo que não me esqueço mais.


E como eu poderia me esquecer, depois disso?
Ela não sabe, mas me ensinou uma coisa linda: o maior engano que alguém pode cometer é pensar que é feliz enquanto passou toda a existência cochilando na sala-de-estar da vida. O segredo da felicidade - e isso, infelizmente, não vem escrito numa fitinha dentro de um biscoito japonês - é conciliar as possibilidades da vida dos sonhos com as possibilidades da vida acordada.

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