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quarta-feira, agosto 15, 2007

Amores livres


Contei em nota recente a entrevista do querido arcebispo na televisão pernambucana.O locutor
fez a seguinte pergunta estapafúrdia:
-"Padre,o que é que o senhor acha do amor livre?".
O nordeste em peso tremeu. O arcebispo fez um risonho suspense e fala:
- "Por que tratar de amor livre se o Nordeste passa fome?"
Assim falou o grande arcebispo.Mas o amigo,Hélio,que soube do episódio,comentava comigo:
-"Ah,o arcebispo pperdeu a chance de uma resposta genial".Se o Hélio lá estivesse havia de responder,na hora,em cima da pergunta:"O amor livre é a fome".
Aqui entro eu para observar:Claro que a fome do nordeste é muito mais promocional.
E porque faz as relações públicas da fome nordestina,o arcebispo despreza ou esquece as outras formas de fome do homem:pois o amor livre,como diz o amigo Hélio,é uma delas, e insisto: - Uma das mais cruéis tipo de fome,das mais hediondas.

Na minha infância havia um rapaz que era o escândalo de toda a Aldeia Campista.Chamava-se Meireles (Meireles ou Marcondes?Não.nao.Era Meireles mesmo).Pois o Meireles tinha uma namorada em cada esquina,noivas e esposas por toda a cidade.
Muitos já insinuavam o viticínio: -"Qualquer dia dão-lhe um tiro!".
Meireles foi,talvez,o primeiro sujeito que ouvi falar em "amor livre".Certa vez houve uma festa na vizinhança e o Meireles(ou seria Marcondes?) estava lá e tomou conta da festa.
Cercado de mocinhas,de senhoras,contou a própria vida.
Confirmou que tinha uma paixão,ou várias em cada bairro.
Alguém lhe perguntou se não tinha vergonha.Então ele abriu o sorriso e disse:-"Vergonha teria de ser homem de uma mulher só".
No fundo,no fundo, a audiência feminina estava fascinada com este descaro monumental.Antes de sair,disse ainda:
- Qualquer um pode gostar de quinhentas ao mesmo tempo.
Eu estava no aniversário.O Meireles foi,talvez o primeiro cínico que conheci na vida real.

Depois que o Meireles saiu,um vizinho,já senhor de idade,de olhos grandes e triste,disse apenas:-"É um canalha!".Ai esta um ponto de exclamação que realmente o velho não usou.Dissera apenas "canalha" sem ira, uma "canalha" que saiu apenas informativo.Quanto a mim,nos meus sete anos,exatamente sete anos,tive uma náusea adulta.Pode parecer que eu esteja aqui retocando,valorizando uma reação infantil.Repito que me veio ânsia,quase um vômito ético.Desinteresse-me pela festa,e vim para casa com vontade de morrer.Exatamente - vontade de morrer.
Eu não entendia um Meireles.
Nascia comigo o horror de trair.Eu queria ser fiel e que todos fossem fiéis.Amar a mesma pessoa sempre.
Em toda minha infância,minha utopia era viver e morrer com o ser amado.

Volto ao Meireles.
Nos fundos da nossa casa havia uma farmácia.E uma tarde o Meireles entra lá.Nunca riu tanto.Ouvia-se a sua gargalhada no fim da rua.Contou anedotas.E em um dado momento diz que naquele momento estava sendo pai outra vez.Alguém perguntou: -"Quantos?". Ele pensou um momento e resmungou:-"Sei lá!".E de repente o Meireles,à volta de todo,puxou o revolver.
Houve protestos: "Não brinca!Vira isso pra lá!".
E então,pálido mas sereno ele introduziu o cano na boca,sem ninguém dizer nada,puxou o gatilho.Eu estava em casa e ouvi o tiro.Lembrou-me agora do tal senhor triste,que o chamava de canalha,disse:-"Quem deveria ter dado o tiro era um pai,um marido,ou irmão de alguma moça dessas".Morte instântanea,disse o jornal no dia seguinte.

Hoje na minha casa,penso de vez em qundo no Meireles.
E o gesto suicida parece um mistério.O mais transparente dos mistérios.
Na época todos perguntaram:-"Por que?".
Ninguém entendia nada.
Mas o mistério de Meireles esta bem nítido.
Morreu de amor livre e,pois, de falta de amor.
Tudo é falta de amor.
As lesões do sentimento.A crueldade.
Tudo,tudo falta de amor.
E o Meireles tentou separar o amor e o sexo.E sempre há os que apodrecem em vida porque separaram o sexo e o amor.Há toda hora esbarramos com sujeitos que praticam a variedade sexual.
Esses vão morrer na mais fria,lívida,espantosa solidão.

Por vezes,de madrugada,começo a jogar com as palavras:
-"Quem tem uma,tem todas.Quem tem todas,não tem ninguém.."
Depois do suicido do Marcondes(ou seria Meireles?),andaram fazendo nos bairros um censo das mulheres de Meireles.Falou em torno de duzentas..
Veja só você.
Porque teve duzentas,o Meireles morreu virgem de amor..

...

Trecho de:
"O Óbvio Ululante:Primeiras Confissões"
Nelson Rodrigues

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